Projeto terapêutico para Getúlio
Brasília
- DF, 06 de janeiro de 1954
Residência
de Hugo Mendes, no caso eu, que vos conto essa história.
- Correspondência! Há tempos não
recebo correspondências!
Prezado Sr. Hugo Mendes.
Envio
este com o propósito de marcar um encontro para tratarmos de negócios. Sei que
há tempos não faz mais acompanhamentos terapêuticos, mas acredito que você seja
a pessoa mais indicada para o que preciso, além de saber também que as
"coisas" na pastelaria estão de mal a pior, o que lamento profundamente.
Sendo assim, te aguardo na próxima segunda, às 9h, no Café Central, mesa 17. Sem
atrasos, por gentileza. Lá falaremos sobre os detalhes.
Cordialmente,
Alzira.
Receber
uma correspondência intrigante como essa, em plena sexta-feira, não é fácil
para uma pessoa ansiosa, talvez neurótica, como eu. Há quanto tempo não pensava
em Acompanhamento Terapêutico? Será que ainda tinha condições de trabalhar
nessa área depois de nove anos atrás de um balcão? Tá certo que as coisas não
andavam muito bem financeiramente, mas com certeza fritar pastéis era muito
mais seguro. Fora o fato de que nem sabia quem era essa Alzira. Pra ser sincero,
nem sabia mais o que seria do meu fim de semana, considerando que isso não
sairia da minha cabeça até o tal encontro. Acompanhamento Terapêutico é algo
que mexe muito comigo.
Eis
que às 9h em ponto estava eu na mesa 17 do Café Central. Logo após, senta-se
uma mulher, na faixa dos 30 e poucos anos, na minha frente. Muito prazer, Sr. Hugo, sou Alzira. Alzira
Vargas. Meu mundo caiu. Alzira Vargas só existia uma, ainda mais no Rio de
Janeiro da década de 50: era a filha do Presidente Getúlio. Mas pra quê uma
mulher tão imponente e segura de si precisava de Acompanhamento terapêutico?
-
Bom, serei direta, não pense que é pra mim. É pro meu pai.
-
Pro seu pai???? Getúlio????
Sou o tipo de pessoa que exagera em
expressões faciais quando me sinto chocado.
-
Sim, e quem mais seria?
-
Desculpe a indelicadeza, Sra. Alzira, mas o presidente Getúlio não me parece
precisar de um acompanhante terapêutico, talvez de uma enfermeira, se pensarmos
na sua idade, mas isso é outra história.
É incrível como falo demais.
-
Agradeço sua opinião, apesar da irrelevância dela. Vou listar alguns pontos que
me trouxeram até o senhor, pra que possamos conversar de maneira mais clara. É
interessante que sejamos rápidos, tenho muito trabalho hoje. Bom, creio que
deve saber que meu pai está com 72 anos de idade e ainda assim insiste em
permanecer envolvido com política. Ele está cansado e não aceita parar. O que
quero é simples: preciso que dê um jeito de tirá-lo o quanto antes desse meio.
Ele precisa sair de casa, pensar em outras coisas. Viajar para descansar, quem
sabe. Ou morrerá.
-
Simples?
-
Simples para você, acredito. Aceita minha proposta?
Pensei em fazer um charme, mas aceitei no
mesmo instante:
-
Hoje mesmo irei até a casa de vocês, falei. Às 13h. Proponho que me convide para almoçar.
E
foi nesse contexto que tudo começou. Pra ser sincero, não fui bem recebido por
Getúlio, que nem sequer quis saber meu nome. Apresentei-me mesmo assim. Percebi
que era um senhor muito ativo mentalmente, apesar de debilitado no sentido
físico. Raciocínio rápido e lógico, concentrado, atento e com uma capacidade
fantástica para resolver conflitos. Nunca vi tanto problema durante um almoço.
Senti até saudades dos almoços na casa da vovó.
Alzira
deixou claro para o pai os motivos de eu lá estar. “É tipo um amigo comprado?”, ele perguntou. E foi assim que, aos
poucos, fui conhecendo Getúlio. Era um senhor de postura curvada, já precisando
de ajuda na realização de suas atividades diárias, apesar de isso o incomodar
muito. Não havia aceitado sua decadência física justamente por compará-la à sua
capacidade mental. Há muito tempo não saía de casa, a não ser em momentos
extremamente necessários ou que envolviam sua prática política. Preferia ficar
distante dos embates com Carlos Lacerda, seu inimigo político que, como dizia,
“era o mais esperto de todos”.
No
último ano, disse Alzira que o pai reduziu significativamente seus contatos
pessoais. “Fala mais comigo agora. Os
meninos vêm visitá-lo e passeiam pelo jardim”. Foi aí que propus minha
primeira intervenção: que pudéssemos caminhar, eu e Getúlio, diariamente e por
1 hora, pelo jardim do Palácio do Catete. Minha ideia inicial era conhecer esse
lugar, estava super curioso, brincadeira: era estabelecer um vínculo que até
então não havia se estabelecido, devido à personalidade forte e fechada do
presidente. Para tirá-lo de casa e dessa zona de conforto, eu precisava
oferecer mais confiança.
Após
dois meses de longas conversas e um possível início de amizade, Getúlio se diz
cansado dessa vida que, para ele, “se
tornou um mar de mentiras e corrupções. Não por minha culpa, Hugo, mas pela
oposição. É muito frustrante passar uma vida toda se dedicando ao povo, aos
problemas do seu país e ver esse mesmo povo contra você. Ninguém sabe o que
enfrentei e tenho enfrentado nos últimos meses”.
Não posso dizer que
me senti feliz com o que veio após essa conversa, mas foi o suficiente para
criar o vínculo que até então procurava um lugar para poder se firmar: num tropeço
pelo jardim, Getúlio foi ao chão. Fui ajudá-lo, porém ele negou. Ao tentar
levantar, o presidente percebeu que não conseguiria sem meu apoio. Foi através
de uma troca de olhares que me pareceu constrangedora num primeiro momento, mas
que rapidamente se transformou em um pedido íntimo de ajuda que Getúlio estendeu
o braço em minha direção. Eu o levantei e, talvez num ímpeto de sentimento, fui
abraçado. Nada mais que dois segundos, mas desde esse dia os caminhos se
direcionaram em outros sentidos.
Já
era meio de Maio quando o convenci a sair de casa – intervenção número dois.
Numero as intervenções principais por acreditar na necessidade de expô-las para
sustentar minha prática enquanto acompanhante terapêutico. Por vários momentos
me vi envolvido sentimentalmente por Getúlio e pasmem, se ele se candidatasse
de novo, eu até faria campanha. Homem bom, comunicativo, líder e um excelente
pai. Mas ali eu era seu acompanhante, contratado por sua filha para a
realização de um trabalho. Trabalho este, inclusive, que começava a dar o
retorno esperado até mesmo por mim, que até então me sentia desacreditado da
possibilidade de levar essa proposta adiante. “Ô homem teimoso!”, eu dizia pra
mim mesmo e às vezes para ele, que apenas sorria.
- Seu
Getúlio, amanhã nós vamos dar uma volta pelo centro da cidade. O que acha de
caminharmos fora do Palácio do Catete, pelas ruas do Rio que cada vez mais se
modernizam? É obra do seu Governo, Seu Getúlio, o senhor tem que ver!
-
Hugo, não precisa vir com essa conversa de que é obra minha e blá blá blá, eu
já sei disso. Podemos sair sim, mas quero ir à praia. E tenho uma condição.
-
Qual?
-
Vou disfarçado. Não dá pra sair na rua de mim mesmo, concorda?
Eu
já havia pensado nisso, mas achei que seria muita intromissão da minha parte
oferecer essa possibilidade. Mas confesso que achei Getúlio muito saidinho e
perspicaz por pensar nisso. Não me surpreendi, mas achei inovador, tratando-se
de um presidente. De 72 anos, diga-se de passagem.
-
Mas como ir disfarçado na praia, Seu Getúlio? De sunguinha? Ri
muito por dentro.
- Muito
me espanta você ser tão restrito assim, meu filho. Já ouviu falar de caminhadas
pela orla?
Opa! Me chamou de meu filho??? A coisa tá
ficando boa.
- Certo,
Seu Getúlio. 8h30 em ponto estarei na porta. Ansioso pelo seu disfarce.
-
Aguarde e confie, disse ele.
Como marcado, às 8h30 eu já estava aguardando o presidente
na porta do palácio. Vejo então Alzira vindo em minha direção, com um sorriso
no rosto, acompanhada de um senhor vestido de paletó, calça e sapatos brancos,
um chapéu na cabeça e uma camisa vermelha listrada de branco por baixo: Eu sempre quis me vestir de malandro! Mas
não conte pra ninguém, foi uma luta transformar os malandros da década passada
em trabalhadores. Ô classe complicada! Mas fala que não fiquei elegante?
-
Elegante e discreto, né, Seu Getúlio? Ninguém vai nos notar, hahaha.
Brincadeira. Ficou ótimo, não é mesmo, Alzira?
-
Sim. Papai até rejuvenesceu. Agora vão e aproveitem!
E
foi a partir desse dia que tudo mudou. Quando saímos pelas ruas do Rio, Getúlio
teve acesso a uma liberdade até então guardada dentro de sua memória. Há anos
não podia caminhar ou ir até outros lugares sem ser notado ou sem vários
seguranças. Ficamos por 20 minutos sentados em frente ao mar de Copacabana e em
silêncio. Percebi seus olhos marejados de lágrimas. Parecia feliz.
A
minha proposta era que ficássemos, naquele dia em especial, por 1h andando
entre algumas ruas e pela orla de Copacabana. Getúlio estava cansado e não
podia exagerar. Andamos pouco, dividimos nosso tempo entre a praia e um
botequim na esquina da Siqueira Campos. Tomei um café com leite e Seu Getúlio,
quase todo o tempo de cabeça baixa, um pão com margarina na chapa e um café
preto. Até parecia um homem simples.
Como
a rotina de caminhar diariamente por algumas ruas do Rio me parecia muito
cansativa para o presidente, propus a última intervenção, em junho daquele ano:
que revezássemos entre caminhadas no palácio e caminhadas pelas ruas da cidade.
E que essas caminhadas fora da cidade pudessem ser direcionadas, como visitas
em locais que agradassem-no, ou cafés e alguns bares específicos, enfim, para
que assim pudéssemos nos relacionar com o meio de maneira mais efetiva, uma vez
que até então estávamos disponíveis às várias possibilidades que a cidade pode
oferecer.
Nessa
época as coisas não andavam muito bem entre Getúlio e Lacerda. O presidente
estava completamente absorvido por problemas políticos e só continuei o
acompanhamento pelo fato de que ele mesmo fazia questão das nossas caminhadas.
Dizia que era a hora de ser ele mesmo. A família apoiava nossas saídas, mas
todos estavam preocupados com sua saúde e com o rumo que sua carreia política
iria tomar. Getúlio não era homem de perder.
Certo
dia, não me lembro a data, estávamos no Bar Tradicional, na Delfim Moreira - já
tínhamos nos enjoado de Copacabana, partimos pro Leblon - e um debate político
estava acontecendo. Ficamos apenas observando e, infelizmente, a maioria dos
que ali estava eram contra Getúlio. Ouvimos absurdos com o nome do presidente,
que permaneceu em silêncio e de cabeça baixa o tempo todo. Queriam que saísse
do poder o quanto antes. Que antigamente era bom, mas que agora não passava um "velho
gagá" autoritário. E por aí foi.
Quando
saímos, Getúlio nada disse. Tentei falar que isso era normal num ambiente de
oposição e que ninguém melhor do que ele pra saber disso. Mas percebi que ficou
em conflito consigo mesmo. No outro dia não quis me ver. Conversei com Alzira,
que disse que o pai não saiu do quarto, e passou o dia vendo televisão e os
noticiários sobre seu governo. Ela estava preocupada.
Não
quis insistir no nosso encontro naquele dia. Me lembrei de algumas conversas em
que o presidente dizia estar vivo por ser bem quisto pelo povo. Nos últimos
meses suas práticas no governo foram atacadas por diversos setores sociais e
até mesmo por alguns sindicatos. Getúlio se mostrava mais frágil nesse sentido.
Não aceitava a rejeição popular. Houve também o atentado de seu capanga contra
Lacerda, que piorou toda a situação.
Dois
dias após o ocorrido caminhamos pelo palácio. Era dia 23 de agosto de 1954, não
posso me esquecer. Getúlio disse que ia sair da política de vez, mas de cabeça
erguida. Que havia compreendido qual seu papel enquanto presidente da república
nos seus dois mandatos e que já era hora de encerrar seu trabalho. E que nossas
caminhadas e saídas pela cidade haviam sido muito esclarecedoras para que ele
tomasse essa decisão.
- É
hora de encerrar minha vida política, Hugo.
-
Concordo com o senhor, Seu Getúlio. Na verdade, apoio a decisão que tomar.
Acredito que é hora de se dedicar à família, às caminhadas, aos amigos...
-
Será possível?
-
Claro que sim! O senhor fez muito pelo Brasil, agora precisa descansar.
- Eu
vou descansar. Mas antes quero entrar de verdade para a história desse país!
-
Mais, Seu Getúlio?
-
Sim, mais.
- E
como?
O
presidente apenas me deu aquele sorriso de lado, depois um abraço e se
despediu. Senti que o acompanhamento terapêutico tinha acabado ali. Eu estava
bem, com a consciência de um trabalho realizado de maneira coerente. Há tempos
não fazia isso, me parecia a primeira vez. Voltei pra casa e me dei conta de
como eu havia me envolvido com tudo aquilo. O que seria do presidente? Como o
povo reagiria à sua saída da presidência? Seria uma vitória e tanta para a
oposição: fazer com que Getúlio deixasse seu cargo, mostrando ao povo que
fracassou enquanto presidente da República.
No
outro dia acordei mais tarde que o normal, às 9h. Fui até a varanda pegar o
jornal e notei uma certa correria pelas ruas. Algo estava acontecendo, mas nada
havia naquela papelada toda em minhas mãos que me explicassem o que era. Foi
quando escutei alguém passando na porta e falando, num tom mais alto: O presidente Getúlio se matou.
Fiquei
em choque. Não pude acreditar no que ouvi e achei quase engraçado. Me troquei
rapidamente e saí pelas ruas a procura de informações. Não demorou muito e já
sabia de tudo: Getúlio foi pressionado a madrugada toda por generais,
almirantes e brigadeiros para que renunciasse. Às 4 da manhã teve uma reunião
de emergência com assessores e Alzira. Às 8h se matou com um tiro.
Ele
deixou uma carta ao povo brasileiro. Uma linda carta, inclusive. Nela, Getúlio
expôs seus anseios e realizações para e com o povo de maneira genial: colocou
seus sentimentos à tona, mas racionalmente. O presidente era assim, sabia lidar
com todos, era flexível. Flexível para perceber, de acordo com Alzira, que me
contou dias depois, que após nossas saídas e conversas o pai pode se enxergar
através de mim, das conversas que escutamos, do povo nas ruas e de sua própria
família. O presidente estava aberto. Aberto até mesmo para a morte.
E
após ler sua carta tive a certeza de que desde nossa última conversa Getúlio já
sabia o que faria. Ele iria se matar e estava tranquilo com relação a isso.
Cheguei a me sentir quase seu confidente quando li sua última frase: Saio da vida para entrar na história. Era
esse o 'mais' que eu perguntei quando nos despedimos. Getúlio sabia que pra
entrar, de fato, pra história do Brasil, enquanto um presidente que poderia
chegar a ser até mesmo considerado um herói do povo brasileiro, precisava
morrer.
Entendi
que quando o presidente disse que era hora de encerrar sua carreira política
queria dizer que era hora também de encerrar sua vida. Há uma certa coerência
se pensarmos naquilo que considerava enquanto prioridade. A vida de Getúlio era
a política. Ou a política era a vida de Getúlio. Ele não saberia viver sem ela.
E, com certeza, ela nunca mais seria a mesma sem ele.
Hugo Mendes Miranda
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